segunda-feira, 30 de abril de 2012

MORTE E VIDA SEVERINA (JOÃO CABRAL DE MELO NETO): Sociodiversidade, Multiculturalismo e Inclusão



Trecho do poema Morte e Vida Severina

MORTE E VIDA SEVERINA (JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ.

 

–  Muito bom dia senhora, 
que nessa janela está 
sabe dizer se é possível 
algum trabalho encontrar?   

–  Trabalho aqui nunca falta 
a quem sabe trabalhar 
o que fazia o compadre 
na sua terra de lá?   

–  Pois fui sempre lavrador, 
lavrador de terra má 
não há espécie de terra 
que eu não possa cultivar.   

–  Isso aqui de nada adianta, 
pouco existe o que lavrar 
mas diga-me, retirante, 
o que mais fazia por lá?   

–  Também lá na minha terra 
de terra mesmo pouco há 
mas até a calva da pedra 
sinto-me capaz de arar.   

–  Também de pouco adianta, 
nem pedra há aqui que amassar 
diga-me ainda, compadre, 
que mais fazias por lá?   

–  Conheço todas as roças 
que nesta chã podem dar 
o algodão, a mamona, 
a pita, o milho, o caroá.   

–  Esses roçados o banco 
já não quer financiar 
mas diga-me, retirante, 
o que mais fazia lá?   

–  Melhor do que eu ninguém 
sei combater, quiçá, 
tanta planta de rapina 
que tenho visto por cá.   

–  Essas plantas de rapina 
são tudo o que a terra dá 
diga-me ainda, compadre 
que mais fazia por lá?   

–  Tirei mandioca de chãs 
que o vento vive a esfolar 
e de outras escalavras 
pela seca faca solar.   

–  Isto aqui não é Vitória  
nem é Glória do Goitá 
e além da terra, me diga, 
que mais sabe trabalhar?   

–  Sei também tratar de gado, 
entre urtigas pastorear 
gado de comer do chão 
ou de comer ramas no ar.   

–  Aqui não é Surubim 
nem Limoeiro, oxalá! 
mas diga-me, retirante, 
que mais fazia por lá?   

–  Em qualquer das cinco tachas 
de um bangüê sei cozinhar 
sei cuidar de uma moenda, 
de uma casa de purgar.   

–  Com a vinda das usinas 
há poucos engenhos já 
nada mais o retirante 
aprendeu a fazer lá?   

–  Ali ninguém aprendeu 
outro ofício, ou aprenderá 
mas o sol, de sol a sol, 
bem se aprende a suportar.   

–  Mas isso então será tudo 
em que sabe trabalhar? 
vamos, diga, retirante, 
outras coisas saberá.   

–  Deseja mesmo saber 
o que eu fazia por lá? 
comer quando havia o quê 
e, havendo ou não, trabalhar.   

–  Essa vida por aqui 
é coisa familiar 
mas diga-me retirante, 
sabe benditos rezar?  
sabe cantar excelências, 
defuntos encomendar? 
sabe tirar ladainhas, 
sabe mortos enterrar?   

–  Já velei muitos defuntos, 
na serra é coisa vulgar 
mas nunca aprendi as rezas, 
sei somente acompanhar.   

–  Pois se o compadre soubesse 
rezar ou mesmo cantar, 
trabalhávamos a meias, 
que a freguesia bem dá.   

–  Agora se me permite 
minha vez de perguntar: 
como senhora, comadre, 
pode manter o seu lar?   

–  Vou explicar rapidamente, 
logo compreenderá:  
como aqui a morte é tanta, 
vivo de a morte ajudar.   

–  E ainda se me permite 
que volte a perguntar: 
é aqui uma profissão 
trabalho tão singular?   

–  é, sim, uma profissão, 
e a melhor de quantas há: 
sou de toda a região 
rezadora titular.   

–  E ainda se me permite 
mais outra vez indagar: 
é boa essa profissão 
em que a comadre ora está?   

–  De um raio de muitas léguas 
vem gente aqui me chamar 
a verdade é que não pude 
queixar-me ainda de azar.   

–  E se pela última vez 
me permite perguntar: 
não existe outro trabalho 
para mim nesse lugar?   

–  Como aqui a morte é tanta, 
só é possível trabalhar 
nessas profissões que fazem 
da morte ofício ou bazar. 
Imagine que outra gente 
de profissão similar, 
farmacêuticos, coveiros, 
doutor de anel no anular, 
remando contra a corrente 
da gente que baixa ao mar, 
retirantes às avessas, 
sobem do mar para cá. 
Só os roçados da morte 
compensam aqui cultivar, 
e cultivá-los é fácil: 
simples questão de plantar 
não se precisa de limpa, 
as estiagens e as pragas 
fazemos mais prosperar 
e dão lucro imediato 
nem é preciso esperar 
pela colheita: recebe-se 
na hora mesma de semear.  


  
Os versos extraídos do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994.

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